sexta-feira, 6 de abril de 2012

Em nome do Pai


A Páscoa é ter três ou quatro anos, um vestido azul-turquesa de fazenda vestido que me picava, era capaz de jurar que tinha a saia pregueada, e estar às cavalitas de um amigo dos meus pais. A Páscoa é tremer de medo com a procissão dos farricocos em Braga nesse mesmo dia do vestido azul-turquesa que me picava mas me aterrorizava menos que aquelas figuras tétricas sem rosto a fazer barulho cidade fora. A Páscoa era não haver politicamente correcto e poupar a criança do vestido azul-turquesa de fazenda àquele susto. A Páscoa é Beira-alta. A Páscoa é Tibaldinho e a festa da aldeia, o povo engalanado nas suas melhores farpelas. A Páscoa é esperar. A Páscoa é esperar pacientemente sem meter dedo ou dente perante uma mesa cheia de doces, bolos, folares pela hora do almoço, controlar o ímpeto de criança, obedecer aos meus pais e portar-me bem lá nessa casa dos doces, bolos e folares e dinheiro por baixo de uma laranja na mesa. A Páscoa é esse sacrifício. A Páscoa é o padre chegar e trazer uma imagem e dar-nos a beijá-la. Diz que era Cristo menino mas nunca entendi porque se havia de não comer bolos, haver dinheiro em cima da mesa e beijar uma imagem naquele tempo. A Páscoa é a procissão do enterro do Senhor pelas ruas de Viseu. A Páscoa é ter muitas dúvidas que dos mortos nunca ninguém voltou e não me consta que Jesus Cristo apreciasse tanto fausto, tanta celebração, alguma ostentação. A Páscoa é estar num qualquer sítio do mundo e pensar Olha, hoje é Domingo de Páscoa. A Páscoa é a esperança de dias longos, dias novos. A Páscoa é leite-creme queimado com a pá de ferro que vai passando de geração em geração. A Páscoa é e será sempre pão-de-ló com queijo da Serra. A Páscoa será sempre o pão-de-ló que fiz, que se fazia para o meu pai. A Páscoa é ele sorrir-me com os olhos amendoados e dizer-me Está uma maravilha, filhota. A Páscoa é comer o pão-de-ló em sua homenagem. Hoje e sempre.

Ingredientes
250 g de açúcar
125 g de farinha
8 gemas
4 ovos inteiros

Preparação
Forrar uma forma com um buraco no meio com papel vegetal. Pré-aquecer o forno a 190 º. Bater os ovos com o açúcar até ficar uma mistura fofa e aveludada cerca de oito minutos. Juntar a farinha e bater mais dois minutos. É muito importante que a massa fiquei bem batida para ficar leve. Deitar com cuidado na forma e levar ao forno com uma folha de papel vegetal por cima cerca de 45 minutos. O tempo de cozedura vai determinar se o pão-de-ló fica mais ou menos húmido, é uma questão de gosto. Não fica particularmente bonito mas é a receita que me foi dada por uma amiga dos meus pais, curiosamente presente naquele episódio matricial da Páscoa em Braga. Nunca me falhou até hoje. Ela também não.


domingo, 1 de abril de 2012

Frugalidades pecaminosas ou clafoutis de morango


A primeira explicação encontra-se na fotografia de casamento dos meus pais. Da esquerda para a direita estão os meus avós paternos, o meu avô garboso e a fazer pose, a minha avó muito sorridente, um momento raro, de vestido escuro, colar de pérolas e chapéu, ambos sorridentes, parecem felizes ambos, o meu pai, muito direito a fazer-se indecentemente para a fotografia, atitude que o acompanhou durante todos os seus dias, a minha mãe, radiosa, como todas as noivas, embevecida a olhar para o seu recente marido e a minha avó materna, pequenina e fofa, já de cabelo branco e com o ar doce de sempre. E vem tudo isto, porque o pedaço de perna e de pantorrilha que sobra dos vestidos de ambas as minhas avós deixa à mostra a pernoca gorducha e o tornozelo grosso. A da minha mãe, igualmente gorducha e de tornozelo grosso não se vê evidentemente. Penso nesta fotografia quando me travo de razões com as pernas encorpadas e tornozelos grossos e maldigo a genética.
A segunda explicação é que de todos os pecados mortais aquele a que mais sucumbo é a gula. Não preciso de comer muito, às vezes como, é verdade, mas sabem os deuses e Baco também, como gosto de uma refeição opípara, preparada com carinho e partilhada com a generosidade de dividir amores e deixar misturar-se no ar o aroma volúvel da amizade. Se estiver sozinha, como algo rápido e frugal, passam-se anos sem que coma um bolo de pastelaria, prescindo de cremes, natas e bolos superlativos de cores e decorações, torço o nariz aos fritos que me olham de soslaio, miseráveis na sua existência entre vitrinas, se não comer pão não morro e batatas fritas e massas, como legumes, como fruta, como iogurtes magros, bebo muita água, mas não resisto a uma boa mesa entre amigos, um jantar de sexta-feira caprichado e um almoço de Domingo retemperador e prenhe de sabores novos e velhos na calmaria de nada fazer.
A terceira explicação é que gosto de cozinhar. Gosto de experimentar coisas novas, acrescentar ao que já sei fazer, modificar o faço, modifico muito e raramente sigo uma receita à risca e gosto das cores, das fragrâncias, da expectativa, de cozinhar para os outros.  E gosto de bebericar um copo de vinho enquanto cozinho, ou enquanto espero ou com a refeição, e de comer uns amendoins salgados e picantes ou depenicar qualquer outra coisa que me corte o adocicado do Moscatel ou do vinho do Porto ou do Port Tonic que, como se prevê, também gosto.
E serve isto para dizer que com esta genética e estes prazeres, só me restam dois trilhos: ou me conformo com as formas rotundas, cada vez mais rotundas, ou me abalanço na dieta. Optei pela última, mas como as dietas são como as leis, existem para ser quebradas, hoje fiz um clafoutis de morangos para rematar o almoço de Domingo. Apetecia-me tanto mas tanto algo doce. Pareceu-me pouco calórico e primaveril para comemorar a estação. Uma fatia não faz mal, ou fará?

Clafoutis de morango

Ingredientes
500 g de morangos
150 g de açúcar
120 g de farinha
4 ovos
200 ml de leite
200 ml de natas light.(usei marca branca Pingo Doce)

Preparação
Pré-aquecer o forno a 180º. Barrar uma forma refratária com margarina. Lavar os morangos. Cortá-los em quartos longitudinais e deixá-los escorrer. Bater os ovos com o açúcar até que fique um creme fofo e esbranquiçado. Juntar a farinha e continuar a bater. Por fim adicionar o leite e as natas. Espalhar os morangos uniformemente pela forma. Deitar o creme por cima e levar ao forno durante cerca de quarenta minutos.  Deixar arrefecer.



Fiquei fã deste doce indefinido sem ser tarte ou bolo ou pudim de textura húmida, aveludada e macia. Ideal para rematar um almoço mais pesado ou para quem gosta de sobremesas leves com fruta. 

quinta-feira, 29 de março de 2012

Biscoitos crocantes reloaded


A verdade é que ninguém dá nada por mim. Quem me conhece ao vivo e a cores acha-me incapaz, meio tresloucada, de fala intempestiva e impulsiva e como tal incapaz de me dar a momentos calmos de tecer sabores no templo por excelência da mulher prendada, a cozinha. Acham-me inapta para a calmaria e harmonia de que são feitos todos os cozinhados opíparos e sublimes. E eu aceito e não lhes levo a mal. Na verdade, acho até uma certa piada a esta minha faceta obscura só inteligível a quem me conhece fora dos portões da escola. Acontece-me muitas vezes quando digo que fiz algo que adentre o domínio da fada do lar, essa capaz de amar com o que cozinha, capaz de fazer declarações de amor só percetíveis ao palato. São cabeças que se viram em desconfiança, olhares inquisitivos que pairam no ar e muitas vezes verbalizações: Foste tu? E outras vezes o descrédito assumido: Não foste nada! Nestas alturas faço o meu número preferido e afirmo peremptória mas imensamente divertida: Sim, fui eu! Acrescento em versão resumida  o que anteriormente foi dito e remato: Ninguém dá nada por mim mas eu sou uma fada do lar. Na cozinha evidentemente. Quem tem ar de estarola basta saber fazer uns biscoitos para merecer o epíteto.
Chegadas mais umas reuniões de final de período e para que pudéssemos rematar o momento com um apontamento doce para apagar a pressão que sobre nós se abate, levei biscoitos para a minha reunião de Direcção de Turma. Não foi a primeira vez que o fiz e na escola há mais quem o faça, comi um delicioso bolo de chocolate feito pela Directora de uma das minhas turmas. Gosto destes momentos. Gosto de cozinhar para os outros. Gosto de lhes dizer que, apesar dos pesares, de anos difíceis, e-mails nem sempre simpáticos, gosto deles. Na  escola pública, essa selva onde o povo se esgadanha aos olhos da opinião pública, os alunos batem nos professores e os professores são uns bandalhos merdosos, passam-se coisas boas, muito boas. Basta afastarmos o preconceito e olhar, entrar, sentir.

 Biscoitos crocantes de amendoim e passas

Ingredientes

1 ½ chávena de flocos de aveia integrais
1 ½ chávena de flocos de trigo tostados
1/3 de chávena de gérmen de trigo
1 chávena de amendoins com sal picados grosseiramente
1 chávena de passas
1 chávena de farinha
1 chávena de açúcar amarelo
200g de margarina
1 ovo

Preparação

Pré-aquecer o forno a 190º. Hidratar as passas em chá Earl Grey morno.
Juntar os flocos de aveia, de trigo, o gérmen de trigo numa tigela e reservar.
Bater o açúcar com a margarina até ficar cremoso. Juntar o ovo e bater mais. Deitar a farinha e bater bem para que fique uniforme. Incorporar os amendoins picados grosseiramente e envolver com uma espátula de silicone. Por último incorporar a mistura de ingredientes sólidos. Moldar pequenas bolas de massa e achatá-las um pouco. Levar quinze a dezoito minutos ao forno pré-aquecido.


Esta é a segunda versão destes biscoitos com pequenas alterações. Foram aprovados e voltei para casa com as migalhas apenas. Há lá coisa melhor?

domingo, 25 de março de 2012

Cantigas de Amigo e uns biscoitos de avelã


Durante um tempo achei que esquecíamos os livros que líamos na escola porque os professores não os tornavam suficientemente interessantes e atractivos. Lembro-me de livros de total negregura, sabem os deuses como li Eurico o Presbítero e como fiquei a odiar The Catcher in the Rye. Acontece que no caso destes dois livros, os professores responsáveis por cada uma das disciplinas eram competentes e interessados. Não seria pois problema deles. Foi só mais tarde que percebi que o problema das leituras obrigatórias não era dos professores, podia ser dos livros, não tenho a menor dúvida, mas era acima de tudo do imperativo ‘Lê!’ Diz Daniel Pennac que o verbo ler não comporta o imperativo. Nada mais certo. Ainda hoje, mulher adulta, se me mandarem ler ou se tiver de ler por obrigação é um sacrifício, procrastino até à última, apetece-me invariavelmente ler outras coisas, mastigo as letras com enfado, e tenho digestões lentas e incomodativas.
Mas os livros que lemos na escola assaltam-me de vez em quando. Não os livros, mas frases soltas que me ficaram na memória. Estranhamente assaltam-me muito uns versos do Cesário Verde quando se me anoitece a alma e por aqui paira alguma soturnidade. Desta vez o que me assaltou foi um verso solto de uma cantiga de amigo. Terá sido há umas três décadas, mas fiquei com aquela sonoridade das ‘avelaneiras frolidas’, logo eu que nunca vi uma avelaneira. E isto tudo veio porque a receita desta semana do Dorie às sextas eram uns biscoitos de avelã. Podiam ser olhos de avelã, provavelmente a cor mais bonita de olhos, mas não. São sempre os livros que me cutucam.

Biscoitos de avelã e compota

Ingredientes
2 chávenas de avelã moída (comprei no Lidl)
1 chávena de farinha sem fermento
½ chávena de farinha com fermento
½ chávena de açúcar
175g de margarina
1 ovo
Doce de framboesa e de alperce ou a gosto

Preparação
Pré-aquecer o forno a 190º. Bater o açúcar com a margarina amolecida até ficar um creme esbranquiçado e fofo. Juntar o ovo e continuar a bater. Juntar a farinha misturada com a avelã moída.
Fazer bolinhas com a massa. Achatá-las e abrir uma cavidade no meio. Levar ao forno. Cerca de 5 minutos depois retirar os biscoitos do forno e reforçar a cavidade com um objecto de madeira, Usei um maço de madeira para esmagar as limas para a caipirinha. Levar ao forno cerca de 15 minutos mais. Retirar do forno e deixar arrefecer um pouco. Levar a compota ao lume o tempo suficiente apenas para derreter, não deixar ferver. Com uma colher de chá encher as cavidades dos biscoitos com o doce.
Estes bolinhos/biscoitos são muito fáceis de fazer e são deliciosos. A massa presta-se a variações e mesmo sem o doce são muito bons. Simples e despreocupados como eu gosto. Bailemos agora, por Deus, ai velidas.




terça-feira, 20 de março de 2012

Abraços de canela

Há dias em que não são precisas palavras. Há dias em que um abraço forte chega, um beijo sentido é o suficiente. Momentos de comunhão, de silêncios cúmplices longos, de conversas só audíveis por um toque ou a troca de olhares de que são feitos os amores sólidos e fortes. Há dias em que as palavras sobram inúteis e há dias em que se completa o cadinho de enlevos com a mais ancestral forma de se amar, o prato preferido, comida preparada para abraçar, perfumada de afectos.

Tarte de natas

Ingredientes
1 embalagem de massa folhada refrigerada
5 ovos
225 g de açúcar
Raspa de 1/2 limão
2 colher de sobremesa de farinha Maizena
4 dl de natas (2 pacotes)
açúcar e canela em pó

Preparação
Pré-aquecer o forno a 190º. Desenrolar a placa de massa folhada e com o papel vegetal. Forrar uma forma de tarte com fundo amovível. Picar o fundo com um garfo e reservar no frigorífico enquanto se prepara o recheio.
Bater os ovos com o açúcar e a raspa do limão com a batedeira eléctrica na velocidade máxima. Dissolver a farinha Maizena nas natas e juntar ao preparado anterior, continuando a bater.
Deitar o creme na caixa de massa e levar forno quente durante cerca de 40 minutos.  Desenformar e polvilhar com açúcar e canela em pó.

Tão fácil o amor às vezes.




sábado, 17 de março de 2012

St.Paddy's Day ou um guisado luso-irlandês


Acalento a ideia de um dia ir a Dublin passar um Bloomsday. Meros dias depois do meu aniversário, lá para Junho, celebra-se a literatura. Pode haver coisa melhor para comemorar um aniversário? Comemora-se o dia em que se desenrola Ulisses, a obra-prima de James Joyce, diz que há gente pela rua a ler excertos da obra e que é uma verdadeira festa. Acalento assim a ideia de começar o dia a pôr o dente num rim frito que, como se sabe, sou rapariga temente e respeitadora no que à literatura diz respeito e o que me falta em religiosidade sobra-me em respeito venerando a entes vários desta arte que me colore os dias. O Bloomsday é a festa da literatura por excelência. O que eu gostava de lá estar um dia. 
Daria também um dia uma saltada a Edimburgo para celebrar a Burns’ Night bem no fim de Janeiro e acabar a noite a meter o dente num haggis, um guisado de miúdos de cabrito, aconchegado como enchido e servido de formas várias. Uma delícia, não se deixem desmoralizar pelos miúdos e o bucho. Ainda hoje me sabem bem os que degustei em terras de kilts e gaitas de foles. Robert Burns amarrou-o a este poema e acompanhado com uma ale num pub ruidoso nessa tal Burns Night é ideia que me parece bem. E uns passeios a pé, castelo acima e abaixo, bater perna nas ruelas íngremes ao entardecer quando o sol ilumina o castelo com o vento cortante a romper a barreira de cachecóis e luvas. E uns pubs. Nada a fazer. A mulher do povo que há em mim odeia sítios presunçosos de gente igualmente presunçosa atada de pés e mãos numa moralidade de pacotilha, agarrada a pratos de fome gourmet e gosta de pubs. Muito. E de degustar. E de bebericar. Acalento também a ideia de um dia ir passar o dia de St. Patrick a Dublin.
Explicada que está esta ideia peregrina do Bloomsday e da Burns Night, resta-me a explicação para o St. Patrick’s Day. Acontece que não, não comemoro dia de festividade religiosa nenhuma, estou cada vez menos católica de há décadas a esta parte, comecei a celebrar o Natal com a festa da família, e na Páscoa revejo “A Vida de Brian” como filme de época, um épico cá em casa, mas acho muita piada a esta festa de rua com paradas e copos que celebra o santo católico que alegadamente terá livrado a Irlanda das cobras. Diz que havia cobras na Irlanda. E leprechauns e potes de ouro no fim do arco-íris. E chega de conversa fiada. Fica por saber se o que gosto é de celebrar a literatura ou se de pôr pé daqui para fora, exactamente agora que me rapinaram parte do ordenado e subsídios. Inclinar-me-ia pela segunda hipótese. É sabido que os irlandeses não são exímios no que respeita a artes culinárias, foi lá que bebi o pior café da minha vida, experiência tão traumática que passado um quarto de século ainda me sabe mal e que a comida, ao contrário da cerveja e do bom humor e simpatia dos irlandeses, pode ser maçadora e sensaborona. Hoje é dia de St. Patrick e, por coincidência ou não, cá em casa o jantar é Irish Stew. Começou a viagem. Estão convidados.


Irish Stew

Ingredientes
1kg de carne de vaca para guisar
1 chávena de caldo de carne
1 chávena de Guinness
1 chávena de vinho tinto
1 colher de sobremesa de molho inglês (Worcestershire)
1 cebola
Batatas
Cenouras
Azeite
Margarina com alho
Alho picado
Tomilho
Sal
Pimenta preta acabada de moer

Preparação
Pré-aquecer o forno a 200º. Numa frigideira aquecer um fio de azeite e uma noz de margarina com alho. Juntar a carne e selar. Salpicar com pimenta preta acaba de moer e alho picado. Passar para um tacho de barro que possa ir ao forno. Usei um tacho de barro saloio que comprei aqui na aldeia. Cortar a cebola em rodelas finas e levar à frigideira onde se fritou a carne. Quando a cebola amolecer um pouco, juntá-la à carne. Acrescentar a chávena de Guinness, a de vinho tinto e de caldo de carne. Temperar com sal, pimenta e acrescentar o tomilho. Levar ao forno cerca de uma hora a hora e meia com o tacho tapado. Verificar a cozedura da carne e rectificar o tempero.
Após cerca de hora e meia de cozedura acrescentar as batatas e as cenouras cortadas em pedaços. Usei batatas pequenas para assar e corre sempre bem. Aguardar até que cozam, cerca de uma hora, e servir. O molho fica líquido mas apurado. Dizem os especialistas que assim deve ser. 

Este prato é um verdadeiro conforto, inadequado para gente apressada, moroso, como convém em dias de calma e de recolhimento, e aconselhado para dias de invernia ou de alma fria. Nada a que os irlandeses não estejam habituados e que nós não saibamos o que é. Agora vou ali à procura do pote de ouro.


fotografias minhas de Dublin (James Joyce) e do Writers' Museum em Edimburgo.

terça-feira, 13 de março de 2012

Temperos de letras (2)

It is impossible not to love someone who makes toast for you. People's failings, even major ones such as when they make you wear short trousers to school, fall into insignificance as your teeth break through the rough, toasted crust and sink into the doughy cushion of white bread underneath. Once the warm, salty butter has hit your tongue, you are smitten. Putty in their hands.

Nigel Slater, Toast.

domingo, 4 de março de 2012

Beef effing Wellington ou uma declaração de amor

A televisão contemporânea está cheia de programas de culinária e gastronomia. Entraram-nos pela casa dentro uma série de chefs completamente desconhecidos e que hoje em dia são quase íntimos. Cá em casa adoptámos um. Bruto, de linguajar impróprio, maneiras ríspidas e uma irresistível pronúncia britânica, Gordon Ramsay passou a ser o nosso chef de estimação. E isto porque, acredito, em cada um de nós há um Gordon Ramsay oculto, mais brando mas ainda assim impetuoso e quando não existe oculto desejamos ardentemente tê-lo e poder soltar uns impropérios sem mais consequências. Ninguém é assim, eu sei, mas há dias, alturas, momentos em que ficaria tão mais leve, assim pudesse libertar este vapores de fúria que se acumulam nos pulmões. Ou nas ancas talvez, o que explica muita coisa e me alivia a consciência. É fúria afinal. Posso comer mais uns biscoitos ou devassar-me num crumble ou num tiramisú. Das gritarias desalmadas do Hell’s Kitchen uma grande parte desenrolava-se em torno do Beef Wellington que, diga-se de passagem, nunca me suscitou grande interesse, mas um dia, há sempre um dia, comecei a nutrir uma certa curiosidade pelo naco de carne embrulhado numa camada generosa de massa folhada. O que faria desesperar e gritar tanta gente? Que raio se esconderia entra a crosta folhada e carne tão rosada? E era motivo para tanta quezília? Era. A gota de água foi quando me acusaram de não fazer Beef Wellington num misto de queixume e súplica e quando na procura da receita me cruzei com este clip. Parece tão fácil.
 E foi hoje então. Os preparativos começaram no dia anterior logo com a escolha do naco de carne. Além de ter de ser suculento tinha de ser redondo, se não nada feito, para desespero do rapaz do talho. Nada como uma escolha criteriosa, qualidade e aspecto. No fundo não é assim em quase tudo na vida? Depois os cogumelos, uma trabalheira para os encontrar e por último foi esperar e deitar mãos à obra. Com calma e de alma descansada. O sol da manhã iluminava-me a cozinha e quase conseguia ver a tarja de mar lá ao fundo, minha companheira inseparável de todas as incursões no mundo de palatos e aromas. E depois foi partilhá-lo entre a expectativa e a surpresa, um copo de vinho frutado para contrastar a intensidade dos cogumelos e as réstias de sol que completaram mais este ágape da intimidade. Delicioso. Suculento. Divinal. Há muitas formas de declarar o amor. Esta é uma delas. Provavelmente a que faço melhor.

Ingredientes
1kg de carne de vaca para assar
250 g de cogumelos de Portobello
1 pacote de presunto fatiado
1 embalagem de massa folhada refrigerada
Sal, pimenta preta acabada de moer, tomilho
Azeite e margarina com alho.
Vinho branco
 Mostarda

Preparação 
Envolver a carne em sal e pimenta preta acabada de moer e selá-la numa frigideira com azeite bem quente durante cerca de 20 minutos. Retirar do lume e deixar arrefecer no frigorífico enquanto se preparam os cogumelos. Depois de lavados e escorridos, triturar num robot de cozinha. Levar ao lume num frigideira com azeite e uma noz generosa de margarina com alho. Deixar sumir por completo a água, temperar com sal, pimenta preta e tomilho. Deitar vinho branco e deixar cozinhar até o vinho sumir por completo. Deixar arrefecer. Retirar a carne do frio e pincelar bem com mostarda. Na bancada da cozinha estender duas folhas de película aderente. Colocar as fatias de presunto, por cima a mistura de cogumelos e em cima a carne. Enrolar a carne e fechá-la bem na película aderente. Levar ao frigorífico 20 minutos. Estender a massa folhada, pincelá-la com o ovo batido nas extremidades e enrolar a carne. Colocar numa travessa untada e levar ao frio mais cinco minutos. Retirar, pincelar com o restante ovo e fazer uns traços com uma faca na longitudinal mas sem cortar a massa. Levar ao forno pré-aquecido a 200º entre vinte e trinta minutos, dependendo do gosto.


Receita adaptada daqui

Sunday lunch



 
Ai a indulgência. A receita seguirá de momentos.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Fajitas chez moi

Advento do fim-de-semana a sexta-feira é por excelência dia de calma anunciada e dia em que me começa a apetecer fazer coisas diferentes. Comecei a maturar a ideia logo de manhã, enquanto finalizava uns afazeres profissionais e, como sempre, o resultado acabou por ser diferente. Primeiro pensei em deitar-lhe uns cogumelos, depois cogumelos e castanhas e por último batatas salteadas e castanhas. Acontece que não tinha cogumelos em casa e hoje estava sem paciência para supermercados, acontece que cheguei tarde a casa e sem paciência para as castanhas, acontece ainda que era jantar e as castanhas não são as mais pacíficas criaturas no que respeita a digestões. Acontece pois que da formação original, assim como se fosse uma banda que se foi desmembrando ao longo dos tempos, restou apenas a carne. De porco.  
Não me lembro nunca de ter comido fajitas de porco, tenho mesmo a certeza de nunca o ter feito e sei também que nunca me cruzei com nenhuma receita, mas o que sei é que tinha cá em casa umas febras de porco bem suculentas compradas no talho aqui da aldeia e que não me apeteciam bifanas fritas ou panadas. Também sei que as fajitas requerem tempo para o tempero se abraçar à carne num lento passo de tango enlaçando ingredientes como se um só fossem, mas não, não tinha tempo para isso, não o suficiente. Teria de optar por um abraço menos longo, mais fugaz. Quantos não demos, assim fugazes, mas mantendo a intensidade? E bons, quentes e envolventes? Isso mesmo. Fajitas seriam.

Fajitas de porco

Comecei por cortar as bifanas em tiras não muito finas. Juntei-lhes uma cebola em rodelas, temperei com sal, alho e pimenta preta moída na hora. Depois azeite, sumo de um limão e umas pitadas generosas de tomilho. Envolvi cuidadosamente com um grafo de madeira, valham-nos os deuses e a asae por este pecado. As batatas então. Cozi batatas pequenas com a pele. Cortei-as em pedaços. Voltemos à carne. Aqueci muito bem uma frigideira e deitei-lhes a carne e a cebola. Deixei frigir com o lume alto e supervisão constante. Ao mesmo tempo comecei a saltear as batatas em azeite. A meio do processo, juntei-lhes alho. No fim faltava o toque de cor com salsa picada e o toque inquieto do vinagre. Como as batatas salteadas da minha infância, eliminadas liminarmente do meu prato sempre que a minha mãe as preparava e que aprendi a gostar em adulta. Fácil e delicioso. Só me faltou um copo de vinho tinto para miscijenar ainda mais os sabores. Se são fajitas ou não é uma outra questão.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Temperos de letras (1)

Hoje em dia, comer bem significa comer mal e quanto mais caro, melhor. Você se certifica disso toda vez que se deixa tapear por mais um restaurante que acabou de abrir na sua cidade e que ficou na moda. Depois de sobreviver a um baita engarrafamento para chegar e a 45 minutos de fila de espera no bar do dito, você se vê finalmente sentado diante do prato. Neste, que acabou de sair pelando do microondas, a comida lembra uma delicada instalação minimalista, com um design irresistível e cores dignas de Natalie Kalmus, a dona do Technicolor. É um arranjo tão bonito que dá pena destroçá-lo com garfo e faca e transformá-lo naquela mixórdia a que todos os pratos, de Paul Bocuse ao prato feito, estão condenados depois que você manda brasa. 
Bem, além das cores e do design indisfarçavelmente novo-rico, o que esse prato tem a oferecer em troca do sacrifício? Um bifinho muito do mixuruca ou um insosso peixinho, uma massa quase sempre medíocre ou uma micro-porção de arroz “selvagem” e – aí está o segredo – belas firulas na louça com o molho de cassis e três talinhos de nirá circundando os quase invisíveis ingredientes. Quinze minutos depois, você está raspando sofregamente o fundo com o último pedaço de pão e pensando em pedir uma feijoada para rebater.

Ruy Castro & Heloísa Seixas,"Viagens ao redor do estômago", Terramarear.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O dia de todas as indecisões

Acordei cedo com uma sensação estranha. O corpo meio mole mas sem sono. Deixei-me deambular sem grandes planos excepto um compromisso à tarde que me impossibilitaria um outro. E agora, a qual vou? Esta indecisão usurpou-me a alma e fez-me balançante, incapaz de tomar decisões, de resolver até as pequenas coisas, dia fora. Ainda de manhã, olhei para o relógio várias vezes, cronometrando se teria tempo de ir à frutaria, aqui mesmo em cima, para fazer a tarte proposta esta semana no Dorie às sextas. Teria? Não teria? E depois a dúvida ainda mais penosa. Faço? Não faço? E ainda: vou fazer uma caminhada? Não vou? Se a este ponto já estão cansados de me ouvir, imaginem a minha saturação desta mulher meio frouxa que raramente me visita. Não gosto dela. Esta indecisão prendia-se como uma outra decisão: fazer dieta. Nada de muito austero, neste momento não suporto mais austeridade, começo até a odiar a palavra, mas um regime mais frugal e equilibrado, sem biscoitos e outras iguarias que me têm desgraçado, só vai contribuir para que não perca o fôlego e me sinta melhor. No meio da indecisão, e depois de ter ido fazer a dita caminhada aqui pelo campo, entre pinhais e limoeiros, decidi que sim, que participaria, a publicação de fotografias apetitosas aguçou-me o apetite e a curiosidade, e deitei mãos à obra. Compradas as maçãs e com a rodela de massa folhada no frigorifico, a consciência um pouco mais leve de me ter ido livrar de calorias por esse mato fora, iniciei esse processo alquímico e profundamente intuitivo de cozinhar. Quem gosta de cozinhar sabe como é. A proposta era uma tarte de maçã, mas não qualquer tarte, uma Tarte Tatin que requer calma e temperança, mesmo sem ser muito trabalhosa. O fim de tarde pôs-se ameno e foi bordejado por um momento doce em excelente companhia e uma chávena de Earl Grey fumegante. Boa decisão afinal.

Ingredientes:
120 g de açúcar
50 g de margarina
6 maçãs Gala
1 embalagem de massa folhada refrigerada

Preparação:
Numa frigideira derreter a margarina. Depois de derretida, juntar o açúcar e continuar no lume. Juntar as maçãs cortadas em oitavos com a parte convexa para baixo e deixá-las caramelizar com calma mas sempre sob supervisão. Quando estão suficientemente douradas, não deixei caramelizar muito, borrifar com Moscatel. Tirar do lume. Aconchegar as maçãs com a massa folhada e levar ao forno pré-aquecido a 190º cerca de 20 minutos. Assim que estiver pronta virar para um prato de forma determinada e sem hesitações. Por esta hora já me tinha passado a indecisão e correu muito bem.
Esta tarte pode ser feita com outra fruta e aromas mais criativos. Hoje o dia não me permitiu grandes variações mas assim mesmo ficou deliciosa. Menos é mais. Hoje pelo menos.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

Como na vida


Que tudo fosse tão fácil. Que tudo fosse tão fácil como cozinhar, fazer bolos e biscoitos. Nesta minha participação no Dorie às Sextas tem havido algo que me ocupa mais tempo do que a confecção das receitas propostas. Não que não me aplique mas quando chega a altura de tirar as fotografias para postar começam as dificuldades. Subo as escadas, abro o armário e, depois de uma espreitadela,  escolho uma toalha. Depois vou tentando. Mudo os biscoitos, mudo os adereços, provavelmente a toalha, dou uma volta aos bolos, acrescento chávenas, ora de chá ora de café, ponho uma colher, tiro a colher, parto os biscoitos ao meio para lhe dar uma ar mais verosímil, como se alguém os tivesse partilhado mas nunca nada fica exactamente como gostaria e nunca se sente na plenitude como ficaram. Desta vez, por exemplo, esperei um dia pela luz da manhã e apliquei-me. O resultado foi o que vêem. 
A proposta desta semana eram uns deliciosos biscoitos de granola. Ora como se sabe, tenho a mania das invenções e, portanto, quando a receita foi divulgada tratei logo de fazer alterações. Primeiro foi a dita granola, cá em casa mais conhecida por müsli. Não tendo conseguido encontrar sem frutos decidi que utilizaria apenas flocos de aveia e flocos tostados de trigo, ambos encontrados na secção de produtos naturais do supermercado e um dos meus poisos nos últimos tempos. E depois a fruta. Excluí liminarmente as passas e optei por damascos picados em pedaços. E como nem tudo são rosas neste templo alquímico de criar fórmulas de prazer e resultados de deleite, a massa saiu-me uma amálgama informe, difícil de arrumar em pequenas circunferências e que me deixou na dúvida durante aqueles quinze minutos de forno. Uma vez cá fora espreitei-os desconfiada e passados dez minutos dissiparam-se-me as dúvidas com um belo cafezinho em mais uma gloriosa manhã de sol: deliciosos, crocantes, doces na medida certa, animadores como o amendoim e levemente ácidos do damasco tímido lá pelo meio. Assim um bocadinho como se quer a vida: não demasiado doce para que não enjoe, suficientemente animadora para que possamos sorrir e com uma acidez esporádica para que o doce se torne mais doce quando regressa. Nada que se sinta nas fotografias, como vêem. Eu não disse que era um fracasso?

Biscoitos crocantes de amendoim e damasco

Ingredientes
1 ½ chávena de flocos de aveia integrais
1 ½ chávena de flocos de trigo tostados
1/3 de chávena de gérmen de trigo
1 chávena de amendoins salgados picados grosseiramente
1 chávena de damascos secos picados
1 chávena de farinha
1 chávena de açúcar amarelo
200g de margarina
1 ovo

Preparação
Pré-aquecer o forno a 190º.
Juntar os flocos de aveia, de trigo, o gérmen de trigo e os amendoins picados numa tigela e reservar.
Bater o açúcar com a margarina até ficar cremoso. Juntar o ovo e bater mais. Deitar a farinha e bater o suficiente para que fique uniforme mas não muito. Incorporar os damascos e envolver com uma espátula de silicone. Por último incorporar a mistura de ingredientes sólidos. Moldar pequenas bolas de massa e achatá-las um pouco. Levar ao forno pré-aquecido quinze a dezoito minutos. 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Prazeres simples


Um destes dias num périplo de supermercado dei por mim em frente à estante de pudins instantâneos. O que poderia ser um acaso sem sentido -quantas mas quantas estantes de produtos existem por esses supermercados fora?- levou-me de braço dado a um passeio ao passado, território que me tem assolado nos últimos tempos. Cutuca-me no braço a fazer-se notar, um lembrete de quanto fui e do que restou e se metamorfoseou no que sou. Os olhos atraídos ao de caramelo, o meu preferido de sempre, relembraram-me do sabor tão mas tão simples, nada elaborado e com zero de sofisticação. Bastava juntar leite e esperar. E as esperas eram quase sempre longas e ansiadas. Embalada na infância tranquila, regressaram todos os sabores tão pouco complexos, sem gourmandise ou ingredientes sofisticados. Açúcar, farinha, ovos e tínhamos um bolo. Arroz e frango e surgiria o mais opíparo arroz de frango que em casa dos meus pais era borrifado com caril para rematar e onde era dada liberdade a cada um para a intensificação deste toque de exotismo. Leite, açúcar e ovos e eis que a casa se inundava com o aroma do açúcar queimado no mais ancestral leite-creme. Tudo tão simples e tão bom. E terá sido à procura dos sabores longínquos, o regresso ao território perdido de vidas tão ausentes de sofisticação balofa que me deu a vontade de sabores simples de técnicas caracterizadas pelo zelo de um tempo de vagares. E apareceram então os biscoitos que me acompanham neste momento com uma chávena de chai bem quente. Às vezes gosto de prazeres simples. Nada mais simples que uma chávena de chá e biscoitos. Nada mais reconfortante.

Biscoitos de trigo e laranja
1 ¾ chávenas de farinha de trigo
1 chávena de gérmen de trigo
½ chávena de açúcar
 ½ chávena de mel
Raspa de uma laranja grande ou de duas pequenas
1 colher de chá de fermento
½ colher de chá de sal
160 g de margarina
1 ovo grande

Misturar os ingredientes sólidos. Juntar a raspa de laranja ao açúcar e misturá-los. Bater o açúcar com a margarina meio derretida até ficar cremoso. Juntar depois o mel. Bater uns dois minutos e adicionar por fim o ovo. Envolver os ingredientes sólidos em duas vezes e levar ao firgorífico a refrigerar durante pelo menos duas horas. Com uma colher deitar bolinhas de massa no gérmen de trigo que sobrou e enrolá-las. Colocar no tabuleiro e achatar com a mão. Levar a forno pré-aquecido a 190º 18 a 20 minutos. 

Receita inspirada aqui.