terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Temperos de letras (1)

Hoje em dia, comer bem significa comer mal e quanto mais caro, melhor. Você se certifica disso toda vez que se deixa tapear por mais um restaurante que acabou de abrir na sua cidade e que ficou na moda. Depois de sobreviver a um baita engarrafamento para chegar e a 45 minutos de fila de espera no bar do dito, você se vê finalmente sentado diante do prato. Neste, que acabou de sair pelando do microondas, a comida lembra uma delicada instalação minimalista, com um design irresistível e cores dignas de Natalie Kalmus, a dona do Technicolor. É um arranjo tão bonito que dá pena destroçá-lo com garfo e faca e transformá-lo naquela mixórdia a que todos os pratos, de Paul Bocuse ao prato feito, estão condenados depois que você manda brasa. 
Bem, além das cores e do design indisfarçavelmente novo-rico, o que esse prato tem a oferecer em troca do sacrifício? Um bifinho muito do mixuruca ou um insosso peixinho, uma massa quase sempre medíocre ou uma micro-porção de arroz “selvagem” e – aí está o segredo – belas firulas na louça com o molho de cassis e três talinhos de nirá circundando os quase invisíveis ingredientes. Quinze minutos depois, você está raspando sofregamente o fundo com o último pedaço de pão e pensando em pedir uma feijoada para rebater.

Ruy Castro & Heloísa Seixas,"Viagens ao redor do estômago", Terramarear.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O dia de todas as indecisões

Acordei cedo com uma sensação estranha. O corpo meio mole mas sem sono. Deixei-me deambular sem grandes planos excepto um compromisso à tarde que me impossibilitaria um outro. E agora, a qual vou? Esta indecisão usurpou-me a alma e fez-me balançante, incapaz de tomar decisões, de resolver até as pequenas coisas, dia fora. Ainda de manhã, olhei para o relógio várias vezes, cronometrando se teria tempo de ir à frutaria, aqui mesmo em cima, para fazer a tarte proposta esta semana no Dorie às sextas. Teria? Não teria? E depois a dúvida ainda mais penosa. Faço? Não faço? E ainda: vou fazer uma caminhada? Não vou? Se a este ponto já estão cansados de me ouvir, imaginem a minha saturação desta mulher meio frouxa que raramente me visita. Não gosto dela. Esta indecisão prendia-se como uma outra decisão: fazer dieta. Nada de muito austero, neste momento não suporto mais austeridade, começo até a odiar a palavra, mas um regime mais frugal e equilibrado, sem biscoitos e outras iguarias que me têm desgraçado, só vai contribuir para que não perca o fôlego e me sinta melhor. No meio da indecisão, e depois de ter ido fazer a dita caminhada aqui pelo campo, entre pinhais e limoeiros, decidi que sim, que participaria, a publicação de fotografias apetitosas aguçou-me o apetite e a curiosidade, e deitei mãos à obra. Compradas as maçãs e com a rodela de massa folhada no frigorifico, a consciência um pouco mais leve de me ter ido livrar de calorias por esse mato fora, iniciei esse processo alquímico e profundamente intuitivo de cozinhar. Quem gosta de cozinhar sabe como é. A proposta era uma tarte de maçã, mas não qualquer tarte, uma Tarte Tatin que requer calma e temperança, mesmo sem ser muito trabalhosa. O fim de tarde pôs-se ameno e foi bordejado por um momento doce em excelente companhia e uma chávena de Earl Grey fumegante. Boa decisão afinal.

Ingredientes:
120 g de açúcar
50 g de margarina
6 maçãs Gala
1 embalagem de massa folhada refrigerada

Preparação:
Numa frigideira derreter a margarina. Depois de derretida, juntar o açúcar e continuar no lume. Juntar as maçãs cortadas em oitavos com a parte convexa para baixo e deixá-las caramelizar com calma mas sempre sob supervisão. Quando estão suficientemente douradas, não deixei caramelizar muito, borrifar com Moscatel. Tirar do lume. Aconchegar as maçãs com a massa folhada e levar ao forno pré-aquecido a 190º cerca de 20 minutos. Assim que estiver pronta virar para um prato de forma determinada e sem hesitações. Por esta hora já me tinha passado a indecisão e correu muito bem.
Esta tarte pode ser feita com outra fruta e aromas mais criativos. Hoje o dia não me permitiu grandes variações mas assim mesmo ficou deliciosa. Menos é mais. Hoje pelo menos.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

Como na vida


Que tudo fosse tão fácil. Que tudo fosse tão fácil como cozinhar, fazer bolos e biscoitos. Nesta minha participação no Dorie às Sextas tem havido algo que me ocupa mais tempo do que a confecção das receitas propostas. Não que não me aplique mas quando chega a altura de tirar as fotografias para postar começam as dificuldades. Subo as escadas, abro o armário e, depois de uma espreitadela,  escolho uma toalha. Depois vou tentando. Mudo os biscoitos, mudo os adereços, provavelmente a toalha, dou uma volta aos bolos, acrescento chávenas, ora de chá ora de café, ponho uma colher, tiro a colher, parto os biscoitos ao meio para lhe dar uma ar mais verosímil, como se alguém os tivesse partilhado mas nunca nada fica exactamente como gostaria e nunca se sente na plenitude como ficaram. Desta vez, por exemplo, esperei um dia pela luz da manhã e apliquei-me. O resultado foi o que vêem. 
A proposta desta semana eram uns deliciosos biscoitos de granola. Ora como se sabe, tenho a mania das invenções e, portanto, quando a receita foi divulgada tratei logo de fazer alterações. Primeiro foi a dita granola, cá em casa mais conhecida por müsli. Não tendo conseguido encontrar sem frutos decidi que utilizaria apenas flocos de aveia e flocos tostados de trigo, ambos encontrados na secção de produtos naturais do supermercado e um dos meus poisos nos últimos tempos. E depois a fruta. Excluí liminarmente as passas e optei por damascos picados em pedaços. E como nem tudo são rosas neste templo alquímico de criar fórmulas de prazer e resultados de deleite, a massa saiu-me uma amálgama informe, difícil de arrumar em pequenas circunferências e que me deixou na dúvida durante aqueles quinze minutos de forno. Uma vez cá fora espreitei-os desconfiada e passados dez minutos dissiparam-se-me as dúvidas com um belo cafezinho em mais uma gloriosa manhã de sol: deliciosos, crocantes, doces na medida certa, animadores como o amendoim e levemente ácidos do damasco tímido lá pelo meio. Assim um bocadinho como se quer a vida: não demasiado doce para que não enjoe, suficientemente animadora para que possamos sorrir e com uma acidez esporádica para que o doce se torne mais doce quando regressa. Nada que se sinta nas fotografias, como vêem. Eu não disse que era um fracasso?

Biscoitos crocantes de amendoim e damasco

Ingredientes
1 ½ chávena de flocos de aveia integrais
1 ½ chávena de flocos de trigo tostados
1/3 de chávena de gérmen de trigo
1 chávena de amendoins salgados picados grosseiramente
1 chávena de damascos secos picados
1 chávena de farinha
1 chávena de açúcar amarelo
200g de margarina
1 ovo

Preparação
Pré-aquecer o forno a 190º.
Juntar os flocos de aveia, de trigo, o gérmen de trigo e os amendoins picados numa tigela e reservar.
Bater o açúcar com a margarina até ficar cremoso. Juntar o ovo e bater mais. Deitar a farinha e bater o suficiente para que fique uniforme mas não muito. Incorporar os damascos e envolver com uma espátula de silicone. Por último incorporar a mistura de ingredientes sólidos. Moldar pequenas bolas de massa e achatá-las um pouco. Levar ao forno pré-aquecido quinze a dezoito minutos. 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Prazeres simples


Um destes dias num périplo de supermercado dei por mim em frente à estante de pudins instantâneos. O que poderia ser um acaso sem sentido -quantas mas quantas estantes de produtos existem por esses supermercados fora?- levou-me de braço dado a um passeio ao passado, território que me tem assolado nos últimos tempos. Cutuca-me no braço a fazer-se notar, um lembrete de quanto fui e do que restou e se metamorfoseou no que sou. Os olhos atraídos ao de caramelo, o meu preferido de sempre, relembraram-me do sabor tão mas tão simples, nada elaborado e com zero de sofisticação. Bastava juntar leite e esperar. E as esperas eram quase sempre longas e ansiadas. Embalada na infância tranquila, regressaram todos os sabores tão pouco complexos, sem gourmandise ou ingredientes sofisticados. Açúcar, farinha, ovos e tínhamos um bolo. Arroz e frango e surgiria o mais opíparo arroz de frango que em casa dos meus pais era borrifado com caril para rematar e onde era dada liberdade a cada um para a intensificação deste toque de exotismo. Leite, açúcar e ovos e eis que a casa se inundava com o aroma do açúcar queimado no mais ancestral leite-creme. Tudo tão simples e tão bom. E terá sido à procura dos sabores longínquos, o regresso ao território perdido de vidas tão ausentes de sofisticação balofa que me deu a vontade de sabores simples de técnicas caracterizadas pelo zelo de um tempo de vagares. E apareceram então os biscoitos que me acompanham neste momento com uma chávena de chai bem quente. Às vezes gosto de prazeres simples. Nada mais simples que uma chávena de chá e biscoitos. Nada mais reconfortante.

Biscoitos de trigo e laranja
1 ¾ chávenas de farinha de trigo
1 chávena de gérmen de trigo
½ chávena de açúcar
 ½ chávena de mel
Raspa de uma laranja grande ou de duas pequenas
1 colher de chá de fermento
½ colher de chá de sal
160 g de margarina
1 ovo grande

Misturar os ingredientes sólidos. Juntar a raspa de laranja ao açúcar e misturá-los. Bater o açúcar com a margarina meio derretida até ficar cremoso. Juntar depois o mel. Bater uns dois minutos e adicionar por fim o ovo. Envolver os ingredientes sólidos em duas vezes e levar ao firgorífico a refrigerar durante pelo menos duas horas. Com uma colher deitar bolinhas de massa no gérmen de trigo que sobrou e enrolá-las. Colocar no tabuleiro e achatar com a mão. Levar a forno pré-aquecido a 190º 18 a 20 minutos. 

Receita inspirada aqui.