sábado, 24 de novembro de 2012

Tarte de pêras ao sabor da intuição


Em tempos que já lá vão, habitavam a minha existência dois seres estranhos. Uma introdução assim poderia ser também uma introdução às nossas vidas: todos nós em tempos idos já tivemos na vida gente estranha que serve apenas o propósito de testar os nossos limites: da paciência, da tolerância, da condescendência e às vezes da nossa liberdade, e de nos permitir que nos conheçamos melhor e melhor também os nossos limites. E já que este é um blogue de culinária, cinjo-me às características que me surpreendiam apenas nesta área da vida. Qualquer receita que passasse pelas mãos daqueles dois e posteriormente pela cozinha tinham de incluir com exactidão enervante todos os ingredientes na medida irritantemente precisa. Para quem, como eu, cozinha muito por intuição aquela disciplina espartana não era nunca vista como evidência de um estádio superior de artes culinárias mas uma incapacidade debilitante de experimentar, ousar, transgredir e um espartilho que me estrafegava as vontades. Se na receita vinha uma folha de couve, uminha, uma apenas teria de povoar o repasto, mesmo que, pelo cheiro e intuição, duas ficassem melhor ou até que pudessem ser dispensadas caso não houvesse em casa ou substituídas por outro ingrediente qualquer. Metade intuição, um quarto de técnica e um quarto de disciplina, cozinhar é sempre mais do que respeitar com exactidão obsessiva o que nos mandam fazer, mesmo que algumas receitas exijam um cuidado extremo nas proporções dos ingredientes ou respeito absoluto pelos tempos de cozedura. Sem eles também não há nada.
Um destes dias quando abri o frigorífico lembrei-me delas. Arrumadas com critério numa caixa de papel que outrora albergou cerejas, as pêras quase me cutucaram quando me estiquei para chegar aos iogurtes. Mais uma semana e seria tarde de mais. Agarrei na intuição, esqueci receitas, espreitei o forno, cheirei os aromas que se casavam pela casa e fiz o que me passou pela cabeça naquele momento: uma tarte com sabor a Inverno, uma reminiscência dos mercados de Natal na Alemanha, quente e reconfortante, coroada com Streusel de avelã. Ora vejam:

Tarte de pêras com Streusel de avelã

Ingredientes
1 base de massa quebrada
Pêras rocha (umas quatro ou cinco, dependendo do tamanho)
1 colher de sopa de açúcar mascavado
1 colher de sopa de açúcar branco
2 colheres de chá de canela
1 colher de chá de pimenta da Jamaica
Moscatel

Streusel:
2 colheres de sopa de açúcar amarelo
2 colheres de sopa de farinha
2 colheres de sopa de miolo de avelã picado
2/3 colheres de sopa de margarina à temperatura ambiente

Preparação
Pré-aquecer o forno a 180º. Forrar uma tarteira de fundo amovível com a base de massa quebrada. Com um garfo picar o fundo da massa. Reservar. Preparar de seguida o Streusel: juntar os ingredientes sólidos numa taça. Adicionar a margarina cortada em pedaços pequenos e com a ponta dos dedos misturar com os restantes ingredientes. Deve ficar uma massa esfarelada igual à que se faz para o crumble. Reservar no frigorífico.
Cortar as peras em tiras finas. Cortei primeiro em quartos, depois em oitavos e ainda outra vez. Dispor as peras na tarteira e polvilhar com a mistura dos açúcares e das especiarias. Borrifar levemente com Moscatel. Repetir a operação até a tarteira ficar bem cheia de fruta. Levar ao forno com uma folha de alumínio por cima para cozer as peras. Quando estiverem cozidas, retirar a folha, deixar mais uns minutos no forno e, por fim, cobrir o Streusel. Deixar alourar. Et voilá. 


sábado, 17 de novembro de 2012

A vida num prato de camarão com caril


Não gosto de gente branda. Não gosto de sabores insossos. Não gosto de apertos de mão moles. Não gosto de sorrisos amarelos ou de desviar de conversas. Não gosto de gente que se escusa a tomadas de posição, que não consegue dizer uma coisa desabrida se for necessário ou que vive existências beatíficas de ausência de palavras. E não gosto de conversa chocha. E de gente manipuladora. É que a manipulação é a arte de dissimular, contornar, dominar o outro até que ele ceda aos nossos intentos sem que o tenhamos afirmado assertivamente. Acontece que esta forma de vida já foi mais turbulenta do que é agora, afinal a idade madura, chamemos-lhe assim, não é só sentir o corpo a ceder implacável à força da gravidade e trouxe-me alguma sensatez com a qual não me tenho dado mal. Esta verborreia serve para dizer que também na comida gosto de sabores fortes, daqueles que nos fazem sentir, beber um vinho intenso ou proclamar as qualidades orgásticas daquilo que ingerimos e gargalhar a seguir com os comensais à nossa frente. Acontece também que por isto que acabei de dizer não gosto de gente que torce o nariz à comida e se resume a uma garfada de nariz torcido, proclamando que estão cheios, como fêmeas em véspera de parir. Terão noção da vida que passa a seu lado? E pronto, agora que já desabafei, aqui fica uma receita que é uma extensão da intensidade com que a vida deve ser vivida. Ou como eu acho que deve ser vivida.

Camarão com caril e leite de coco

Ingredientes
1 kg de camarão congelado
2 colheres de sopa de caril
1 colher de sopa de garam masala
2 colheres de sopa de azeite
Sumo de um limão grande ou dois pequenos
Pimenta preta acaba de moer
125 ml de leite de coco
2 colheres de sopa de natas espessas (usei Créme Fraiche)
Coentros

Preparação
Descongelar os camarões. Tirar-lhes a cabeça e descascar. Temperar com sal grosso e reservar.
Fazer uma pasta com o caril, garam masala, azeite, sumo de limão e pimenta preta. Envolver os camarões na pasta e levar ao frigorífico cerca de uma hora.
Aquecer uma frigideira de fundo aderente e deitar os camarões. Quando começar a derreter e os camarões a ganhar cor, juntar o leite de coco e deixar cozinhar. Os camarões devem ficar cozinhados mas não demasiado para não perder o sabor e a consistência. Adicionar as natas e deixar levantar fervura apenas. Polvilhar com os coentros picados.
Servir com arroz branco.


Esta receita de preparação fácil, embora não muito económica, faz as delícias dos apaixonados pela vida, desde que gostem de caril, claro.

domingo, 11 de novembro de 2012

Abóbora em quatro actos e uns muffins outonais


Cá em casa a abóbora teve ao longo dos tempos três aproveitamentos, usos, aplicações, como lhe queiram chamar.
A primeira é a mais óbvia de todas: sopa. Sopa de abóbora é uma das minhas preferidas por uma razão que aqui vos confesso, a cor. Não gosto muito de sopas de base branca e o alaranjado da abóbora colore as minhas sopas na perfeição. Vou-a perfumando como me apetece ou consoante o que tenho de ervas aromáticas, hortelã ou coentros e conforto-me em dias de invernia com uma tigela de sopa que deixo arrefecer na minha frente. A segunda utilização é em doce. Nada de tão simples e tão delicioso: doce de abóbora com requeijão de Seia, do autêntico, do que me traz saudades daquele que no meu tempo de infância aparecia acamado em folha de couve. Nesse tempo de liberdade absoluta a ASAE não existia nem em projecto e vivíamos tranquilos na ignorância de tantos perigos que nos ensombram a existência e até o gesto mais cândido. O meu doce de abóbora tem um único senão: a quantidade de açúcar. Mesmo reduzida é sempre muito açúcar e se reduzirmos de mais corremos os risco de ter um caldo sensaborão de consistência mole e eu não gosto de coisas moles.  O terceiro destino da abóbora é nos doces de Natal da minha mãe. Em rigor, este devia ser o primeiro, porque desde que me lembro de ser gente, lembro-me de a ver fazer fritas de abóbora como lhes chama. As fritas de abóbora têm um ritual muito próprio. Primeiro a compra da abóbora, depois cortá-la em pedaços, cozer, escorrer. Nos tempos de vida do meu pai, era ele que partia as nozes para pôr nas fritas. E depois o cheirinho da canela, o cheiro a Natal e ao calor que a quadra espalhava nos corações mesmo em casas frias do pináculo do Inverno.
Hoje conheci um outro uso para a abóbora: muffins. A proposta desta semana do Dorie às sextas foram uns muffins de abóbora. Confesso que fiquei um bocado desconfiada, mas depois de tantos elogios abalancei-me. Ficaram aprovados. O primeiro foi literalmente comungado com a minha mãe, partido à mão e partilhado assim mesmo Toma, Mamã! Desconfio que também por isso me souberam tão bem.

Muffins de abóbora com nozes e laranja

Ingredientes
250 g de farinha de trigo
2 colheres de chá de fermento em pó
125 g de margarina à temperatura ambiente
150 g de açúcar branco
50 g de açúcar amarelo
2 ovos grandes
1 chávena média de puré de abóbora
½ iogurte natural magro
Raspa de uma laranja
1 chávena de nozes picadas
1/4 de colher de chá de sal
1  colher de chá de canela em pó
1 colher de chá de pimenta da Jamaica moída
Pau de canela

Preparação
Partir a abóbora em cubos e cozer com pouca água e um pau de canela. Escorrer, deixar arrefecer e reduzir a puré.
Pré-aquecer o forno a 200º. Misturar os ingredientes secos: farinha, fermento, sal e as especiarias Bater a manteiga à temperatura ambiente com os açúcares e a raspa de laranja até obter uma mistura cremosa. Juntar os ovos, um de cada vez, batendo bem. Misturar a abóbora e o iogurte. Adicionar os ingredientes secos e envolver sem bater. Juntar as nozes cortadas em pedaços. Deitar a mistura nas formas (usei de silicone), polvilhar com os pedaços de nozes e levar ao forno durante cerca de 20 minutos. 


Fiz algumas alterações à receita original: omiti o gengibre, a noz moscada, o extracto de baunilha e as passas,  acrescentei mais nozes, substituí o buttermilk por iogurte magro natural e perfumei-os com raspa de laranja. Verdadeiramente outonais. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Homenagens de açúcar-queimado


Era Primavera. Quando o fui ver não se deixou derrotar pela cama de hospital e declarando o amor eterno à minha mãe ordenou-me que, apesar do caos e no meio do caos, lhe comprasse um presente de aniversário. Seria dali a um ou dois dias. Ainda argumentei que poderíamos esperar pelas suas melhoras, ficaríamos apenas por um bouquet de flores simbólico, a mamã compreenderia. Não se deixou convencer e lá da cama rodeada de aparelhómetros estranhos afirmou ‘enxoval que não vai com a noiva…’. Comprei o presente de aniversário, celebrá-mo-lo tal como havia vaticinado e poucos dias depois ele deixaria aquele lugar e regressaria à cama que foi sua durante um mês aproximado. Retomada a rotina e as refeições, quando lhe perguntámos se tinha algum desejo especial foi peremptório: leite-creme. No meio do caos fiz contas ao tempo que me sobrava entre trabalho intenso e visitas diárias ao hospital sem que em momento algum me passasse pela cabeça faltar ao desejo afirmativo do meu querido pai. Falha-me a memória e não consigo já pensar se terei sido eu ou a minha mãe a fazê-lo, inclino-me mais para a segunda hipótese, mas ainda o vejo à nossa frente: o meu pai sentado na cama, renovado e cheio de vontade de sair dali e o seu leite-creme, cozinhado com o amor incondicional que eu e a minha mãe lhe tínhamos.
Hoje foi dia de cemitérios. Dia de visitar quem partiu. Fiquei em casa a dar Pão-por-Deus, angustiada com a perspectiva de ser o último. Fiz um almoço acolhedor que partilhei com os que mais amo nesta vida e sem os quais não concebo sequer a minha. A sobremesa foi leite-creme. A minha maneira de homenagear o meu querido pai. Faltava à mesa, mas estará sempre connosco. E estava bom, papá.

Ingredientes:
1 litro de leite
6 gemas de ovos pequenos
2 colheres de sopa bem cheias de farinha de trigo
6 a 8 colheres de sopa de açúcar

Preparação:
Num tacho juntar a farinha e o açúcar. Juntar um pouco de leite e depois as gemas de ovos. Mexer bem. Adicionar o leite aos poucos, mexendo sempre a cada adição.
Levar a lume brando. Mexer sempre para não ganhar grumos. Deixar engrossar mas não deixar ferver. Depois de ficar um creme uniforme e aveludado, deitar num recipiente. Deixar arrefecer um pouco até ficar com uma camada solidificada na superfície. Espalhar açúcar com uma colher e queimar. Usei um ferro antigo que já vem da casa da minha avó mas pode ser feito com um maçarico de cozinha. Esta sobremesa tão deliciosa quanto simples e autêntica deve ser feita com tempo e paciência. Não se compadece com ritmos alucinantes de cozinheiras apressadas.