terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Temperos de letras (1)

Hoje em dia, comer bem significa comer mal e quanto mais caro, melhor. Você se certifica disso toda vez que se deixa tapear por mais um restaurante que acabou de abrir na sua cidade e que ficou na moda. Depois de sobreviver a um baita engarrafamento para chegar e a 45 minutos de fila de espera no bar do dito, você se vê finalmente sentado diante do prato. Neste, que acabou de sair pelando do microondas, a comida lembra uma delicada instalação minimalista, com um design irresistível e cores dignas de Natalie Kalmus, a dona do Technicolor. É um arranjo tão bonito que dá pena destroçá-lo com garfo e faca e transformá-lo naquela mixórdia a que todos os pratos, de Paul Bocuse ao prato feito, estão condenados depois que você manda brasa. 
Bem, além das cores e do design indisfarçavelmente novo-rico, o que esse prato tem a oferecer em troca do sacrifício? Um bifinho muito do mixuruca ou um insosso peixinho, uma massa quase sempre medíocre ou uma micro-porção de arroz “selvagem” e – aí está o segredo – belas firulas na louça com o molho de cassis e três talinhos de nirá circundando os quase invisíveis ingredientes. Quinze minutos depois, você está raspando sofregamente o fundo com o último pedaço de pão e pensando em pedir uma feijoada para rebater.

Ruy Castro & Heloísa Seixas,"Viagens ao redor do estômago", Terramarear.

2 comentários:

Suzana disse...

Leonor,

Obrigada por esta publicação! Li o texto com sofreguidão e fiquei com sentimentos contraditórios. Há uma superficialidade latente na relação actual com a comida em que tudo é artificial: desde a própria comida, aos gestos, lugares e até aos momentos em que o acto de comer acontece. Julgo que é essa crítica que os autores procuram fazer e que subscrevo. Acho é perigoso generalizar e adoptar a visão simplista, misturando argumentos e "dando de novo". Por um lado a comida é mero status e experiência frívola, por outro é apenas combustível e é preciso ser em "quantidade" para saciar. Acho redutor. Mas não conheço o livro, nem o texto completo pelo que esta minha minha impressão pode estar equivocada.

Mais importante e o que aqui me traz, fica o desejo de felicidades para esta nova aventura nos vários dias da semana, para além das sextas. :))

Um beijo*

Leonor disse...

Obrigada pela visita, Suzana :)
Eu gosto muito deste pedaço de prosa porque me identifico imenso com ele. Acho que hoje se está a cair numa presunção culinária ou gastronómica que odeio. Às vezes não passa de um mero 'arranjo' no prato sensaborão mas com imenso estilo mas obviamente que por outro lado se assiste a um regresso ao passado, a alguns sabores matriciais revestidos do tempo presente e acho o resultado muito engraçado.
O livro é sobre viagens e este pedaço foi retirado de um capítulo onde ele também fala elogiosamente da comida portuguesa.
Vou tentar escrever além das sextas.
Beijinhos