Em tempos que já lá vão,
habitavam a minha existência dois seres estranhos. Uma introdução assim poderia
ser também uma introdução às nossas vidas: todos nós em tempos idos já tivemos
na vida gente estranha que serve apenas o propósito de testar os nossos
limites: da paciência, da tolerância, da condescendência e às vezes da nossa
liberdade, e de nos permitir que nos conheçamos melhor e melhor também os
nossos limites. E já que este é um blogue de culinária, cinjo-me às
características que me surpreendiam apenas nesta área da vida. Qualquer receita
que passasse pelas mãos daqueles dois e posteriormente pela cozinha tinham de
incluir com exactidão enervante todos os ingredientes na medida irritantemente
precisa. Para quem, como eu, cozinha muito por intuição aquela disciplina
espartana não era nunca vista como evidência de um estádio superior de artes
culinárias mas uma incapacidade debilitante de experimentar, ousar, transgredir
e um espartilho que me estrafegava as vontades. Se na receita vinha uma folha
de couve, uminha, uma apenas teria de povoar o repasto, mesmo que, pelo cheiro
e intuição, duas ficassem melhor ou até que pudessem ser dispensadas caso não
houvesse em casa ou substituídas por outro ingrediente qualquer. Metade
intuição, um quarto de técnica e um quarto de disciplina, cozinhar é sempre
mais do que respeitar com exactidão obsessiva o que nos mandam fazer, mesmo que
algumas receitas exijam um cuidado extremo nas proporções dos ingredientes ou
respeito absoluto pelos tempos de cozedura. Sem eles também não há nada.
Um destes dias quando abri o
frigorífico lembrei-me delas. Arrumadas com critério numa caixa de papel que
outrora albergou cerejas, as pêras quase me cutucaram quando me estiquei para
chegar aos iogurtes. Mais uma semana e seria tarde de mais. Agarrei na intuição,
esqueci receitas, espreitei o forno, cheirei os aromas que se casavam pela casa
e fiz o que me passou pela cabeça naquele momento: uma tarte com sabor a
Inverno, uma reminiscência dos mercados de Natal na Alemanha, quente e
reconfortante, coroada com Streusel de avelã. Ora vejam:
Tarte de pêras com Streusel de avelã
Ingredientes
1 base de massa quebrada
Pêras rocha (umas quatro ou
cinco, dependendo do tamanho)
1 colher de sopa de açúcar
mascavado
1 colher de sopa de açúcar branco
2 colheres de chá de canela
1 colher de chá de pimenta da
Jamaica
Moscatel
Streusel:
2 colheres de sopa de açúcar
amarelo
2 colheres de sopa de farinha
2 colheres de sopa de miolo de
avelã picado
2/3 colheres de sopa de margarina
à temperatura ambiente
Preparação
Pré-aquecer o forno a 180º.
Forrar uma tarteira de fundo amovível com a base de massa quebrada. Com um
garfo picar o fundo da massa. Reservar. Preparar de seguida o Streusel: juntar os
ingredientes sólidos numa taça. Adicionar a margarina cortada em pedaços
pequenos e com a ponta dos dedos misturar com os restantes ingredientes. Deve
ficar uma massa esfarelada igual à que se faz para o crumble. Reservar no
frigorífico.
Cortar as peras em tiras finas.
Cortei primeiro em quartos, depois em oitavos e ainda outra vez. Dispor as
peras na tarteira e polvilhar com a mistura dos açúcares e das especiarias.
Borrifar levemente com Moscatel. Repetir a operação até a tarteira ficar bem
cheia de fruta. Levar ao forno com uma folha de alumínio por cima para cozer as
peras. Quando estiverem cozidas, retirar a folha, deixar mais uns
minutos no forno e, por fim, cobrir o Streusel. Deixar alourar. Et voilá.