quinta-feira, 19 de abril de 2012

Paella ou a felicidade da partilha


Uma mulher acabada de casar traz consigo quase todos os sonhos do mundo. Desliza pelos dias fora com a leveza da felicidade menina, a extensão de momentos indizíveis votados apenas às mulheres. O casamento é das mulheres. São elas que se transfiguram num ritual iniciático alimentados de esperanças e ilusões. E julgam nesse efémero momento transcendental que a vida será não mais do que a poesia que se liberta do breve instante em que de braço dado com o seu pai, o homem primeiro, desliza de sorriso tímido e transbordante rumo a uma nova vida. O aroma indefinível da plenitude paira no ar como um manto protector dos tontos felizes, ingénuos tolos, os que assumem que o resto das suas vidas não será se não uma extensão dos sorrisos e afectos do dia primeiro.
Uma mulher acabada de casar usa o sonho do amor como véu e cuida do bouquet de expectativas como o enleio das flores belas e frágeis. Julga-o eterno.
Uma mulher acabada de casar é um cadinho de esperança de amores partilhados e românticos. E é feliz.
Eu como todas as mulheres acabadas de casar tinha em mim todos os sonhos do mundo e o prazer de o partilhar com os amigos. Houve almoços e jantares para os mais íntimos, a total dedicação à cozinha.
Éramos todos à mesa e o dia estava cinzento. O almoço foi paella. A primeira que terei feito na minha vida e o primeiro prato que servi como mulher casada, anfitriã no meu castelo de sonhos. Todas as paellas são desde então a celebração desse ensejo. O amor deve ser partilhado. Só partilhado é amor.


Paella

Ingredientes
150 g de bacon cortados em pedaços pequenos
1/2  chouriço de carne (geralmente compro de Seia)
1 cebola grande
Alho picado
200 g de carne de porco cortada em cubos pequenos
200 g de carne de vaca cortada em cubos pequenos
Mexilhões (deito a gosto, sem fazer a menor ideia da quantidade)
Camarão (exactamente como os mexilhões)
 2 copos de arroz para risotto.
Azeite
Sal
Pimenta preta
1 colher de chá de açafrão.

Preparação
Cozer os camarões em bastante água com sal. Depois de cozidos, retirá-los para arrefecer e reservar a água em que foram cozidos. Num recipiente para paella ou numa frigideira funda com pegas redondas que possa ir ao forno, deitar um fio de azeite. Deixar aquecer e juntar o bacon e o chouriço cortados em pedaços. Quando começar a frigir, adicionar a cebola picada, o alho e meia folha de louro. Deixar que a cebola amoleça sem refogar e ganhe os aromas do bacon e do chouriço. Juntar depois as carnes temperadas levemente com sal, alho picado e pimenta preta e deixar fritar em lume brando mexendo de vez em quando.
Adicionar os camarões e os mexilhões congelados. Depois de cozinhados, acrescentar o arroz para risotto, deixar fritar e envolver muito bem com todos os ingredientes. Juntar a água de cozer os camarões e o açafrão diluído na água. Para os dois copos de água pus três de água. Continuar em lume brando mas deve ter-se cuidado e mexer levemente de vez em quando. Provar e rectificar os temperos. Quando o arroz estiver praticamente cozido, levar ao forno pré-aquecido a 200º. Servir quando estiver pronto, o arroz deve estar cozido mas um pouco húmido. 
Esta receita é o resultado de uma década de paellas. Já acrescentei outros ingredientes como frango, lulas ou ameijoas. Já experimentei com outros tipos de arroz, agulha ou carolino, mas com o de risotto fica infinitamente melhor.  Recomendo. Gosto de fazer mudanças, os ingredientes podem variar um pouco e as porções são muitas vezes a ‘olho’, a maneira como funciono melhor. Não acrescento nunca ervilhas, embora a paella original as tenha. Desta vez levou meia malagueta para lhe dar um toque atrevido.
É um dos meus pratos preferidos. É quente, retemperante, variado e colorido quer pela riqueza dos ingredientes quer pelo açafrão.  É a minha paella.



Esta história e a receita foram escritas para  O Bolo da Tia Rosa que está a festejar o primeiro aniversário do blogue. Os meus parabéns para a Mané.

sábado, 14 de abril de 2012

A vida na aldeia e um bolo de morangos



Dizem-me que a cidade me falta e que bastarão uns fumos poluentes logo ali na Calçada de Carriche para que se me libertem os humores e os meus dias se encham de sol. A cidade falta-me, é verdade. Falta-me muitas vezes. Faltam-me os lugares-comuns da luz de Lisboa e falta-me o bulício de cidade, pessoas que se cruzam de um lado para o outro, correrias e idiossincrasias várias. Não que me sinta citadina ou urbana mas as grandes urbes são como ímans onde sonho sempre regressar.
A vida na aldeia não é como a vida na cidade. A vida na aldeia é comandada pelos passos lânguidos de um tempo muito próprio, de uma outra dimensão, como se as horas tivessem uma medida de tempo oculta vagarosa, uma clepsidra feita de vagares que se alternam noite e dia, e se alongam entre conversas várias no meio do largo ou em plena rua indiferentes a carros ou quaisquer outros veículos. Na aldeia reinam as pessoas e os vagares.
Na aldeia não reinam só os vagares. Na aldeia reina a alma de gente que tem o negócio no sangue. Se puderem vender nunca ficarão parados, jamais calados perante as qualidades indiscutíveis dos seus bens e irredutíveis na arte de convencer a freguesia. Não há como eles. A arte está-lhes nos genes. Na aldeia não há isso de trabalho infantil, há a necessidade de dar um jeito quando os adultos se ausentam para um qualquer propósito, uma responsabilidade que se incute sem que daí venha mal ao mundo. Desde tenra idade é vê-los diligentes nas demasias e a destrocar dinheiro enquanto elogiam as batatas ou bendizem os morangos e perguntam se queremos ovos caseiros, na cidade diz que são biológicos.
Foi hoje pela fresca. Um almoço de família ditaria uma sobremesa para a qual me faltava fruta. Rumei à mercearia que agora se acomodou no largo da igreja mas desta feita quase de frente para a igreja e isto porque, suspeito, o tempo em que estiveram de costas para a igreja o negócio murchou como grelos ao sol. Seguiu-se um breve período em que a venda tinha lugar numa carrinha. Uma vez aberta desvendavam-se cores e aromas, formas rotundas e longilíneas de legumes e frutos diversificados. Uma festa para os sentidos. Ainda estou para perceber porque aquele poema do Cesário Verde nunca me convenceu.
Estava lá o João. Tem uns nove anos, quem sabe, uns olhos azuis acinzentados encantadores e a ginga do negócio no corpo. Estava a jogar um jogo no computador literalmente virado de cangalhas, a noventa graus e com o ecrã apoiado em cima duns caixotes, enquanto atendia uma anciã insatisfeita com a cor tão desmaiada do açúcar amarelo. Os meus olhos saltaram para uns abacates bem rotundos, um regalo para os olhos, e quando murmurei algo sobre os ditos, o João saiu da caixa e ensinou-me, pegando num abacate Quer ver, disse, aproximando-o de mim, Se se ouvir o caroço lá dentro está maduro e pegando num outro exemplificou abanando-o levemente Está a ouvir? Sim, estava.
Comprei morangos para o bolo do almoço de família, não havia ameixas e as nêsperas não me convenceram. Voltei vagarosa. Perscrutei os patos e galinhas da vizinha a caminho de casa, a exuberância dos limoeiros e fui cumprimentada pela fragrância da glicínia à entrada do jardim.
Há dias em que tenho saudades da cidade. Hoje não foi um deles. 


Bolo (desta vez ) de morangos 

Ingredientes
4 ovos
200g de farinha
200g de açúcar
200g de margarina
morangos ou outra fruta a gosto

Preparação
Untar uma forma de pirex baixa e pré-aquecer o forno a 190º. Bater a margarina com o açúcar. Juntar os ovos um a um e adicionar por fim a farinha continuando a bater mas em velocidade média. Deitar na forma e espalhar os morangos. Levar ao forno cerca de 20 minutos. 
Este bolo que fica quase uma tarte presta-se a muitas variações de acordo com a fruta que for adicionada. Já experimentei com framboesas, mistura de frutos silvestres congelada, pêssegos e maçã envolvida em açúcar e canela. Se se quiser fazer um bolo maior é só acrescentar 50 gramas de cada ingrediente por cada ovo a mais. Muito fácil de confeccionar não me tem desiludido. Hoje também não correu mal.


segunda-feira, 9 de abril de 2012

Temperos de letras (3)

Esta é uma arte que me dá prazer. Existe uma espécie de feitiçaria em todo o trabalho culinário: na escolha dos ingredientes, no processo de misturar, raspar, derreter, macerar e aromatizar, nas receitas retiradas de livros antigos, nos utensílios tradicionais - o pilão, o almofariz, a mistura com que a minha mãe fazia o seu incenso convertidos a um propósito mais caseiro, as suas especiarias e ervas aromáticas cedendo as subtilezas a uma magia mais básica e sensual. E é em parte a efemeridade de tudo que me delicia: tanta preparação amorosa, tanta arte e experiência aplicada num prazer que dura não mais que um momento e que só uns poucos apreciarão plenamente.

Joanne Harris, Chocolate.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Em nome do Pai


A Páscoa é ter três ou quatro anos, um vestido azul-turquesa de fazenda vestido que me picava, era capaz de jurar que tinha a saia pregueada, e estar às cavalitas de um amigo dos meus pais. A Páscoa é tremer de medo com a procissão dos farricocos em Braga nesse mesmo dia do vestido azul-turquesa que me picava mas me aterrorizava menos que aquelas figuras tétricas sem rosto a fazer barulho cidade fora. A Páscoa era não haver politicamente correcto e poupar a criança do vestido azul-turquesa de fazenda àquele susto. A Páscoa é Beira-alta. A Páscoa é Tibaldinho e a festa da aldeia, o povo engalanado nas suas melhores farpelas. A Páscoa é esperar. A Páscoa é esperar pacientemente sem meter dedo ou dente perante uma mesa cheia de doces, bolos, folares pela hora do almoço, controlar o ímpeto de criança, obedecer aos meus pais e portar-me bem lá nessa casa dos doces, bolos e folares e dinheiro por baixo de uma laranja na mesa. A Páscoa é esse sacrifício. A Páscoa é o padre chegar e trazer uma imagem e dar-nos a beijá-la. Diz que era Cristo menino mas nunca entendi porque se havia de não comer bolos, haver dinheiro em cima da mesa e beijar uma imagem naquele tempo. A Páscoa é a procissão do enterro do Senhor pelas ruas de Viseu. A Páscoa é ter muitas dúvidas que dos mortos nunca ninguém voltou e não me consta que Jesus Cristo apreciasse tanto fausto, tanta celebração, alguma ostentação. A Páscoa é estar num qualquer sítio do mundo e pensar Olha, hoje é Domingo de Páscoa. A Páscoa é a esperança de dias longos, dias novos. A Páscoa é leite-creme queimado com a pá de ferro que vai passando de geração em geração. A Páscoa é e será sempre pão-de-ló com queijo da Serra. A Páscoa será sempre o pão-de-ló que fiz, que se fazia para o meu pai. A Páscoa é ele sorrir-me com os olhos amendoados e dizer-me Está uma maravilha, filhota. A Páscoa é comer o pão-de-ló em sua homenagem. Hoje e sempre.

Ingredientes
250 g de açúcar
125 g de farinha
8 gemas
4 ovos inteiros

Preparação
Forrar uma forma com um buraco no meio com papel vegetal. Pré-aquecer o forno a 190 º. Bater os ovos com o açúcar até ficar uma mistura fofa e aveludada cerca de oito minutos. Juntar a farinha e bater mais dois minutos. É muito importante que a massa fiquei bem batida para ficar leve. Deitar com cuidado na forma e levar ao forno com uma folha de papel vegetal por cima cerca de 45 minutos. O tempo de cozedura vai determinar se o pão-de-ló fica mais ou menos húmido, é uma questão de gosto. Não fica particularmente bonito mas é a receita que me foi dada por uma amiga dos meus pais, curiosamente presente naquele episódio matricial da Páscoa em Braga. Nunca me falhou até hoje. Ela também não.


domingo, 1 de abril de 2012

Frugalidades pecaminosas ou clafoutis de morango


A primeira explicação encontra-se na fotografia de casamento dos meus pais. Da esquerda para a direita estão os meus avós paternos, o meu avô garboso e a fazer pose, a minha avó muito sorridente, um momento raro, de vestido escuro, colar de pérolas e chapéu, ambos sorridentes, parecem felizes ambos, o meu pai, muito direito a fazer-se indecentemente para a fotografia, atitude que o acompanhou durante todos os seus dias, a minha mãe, radiosa, como todas as noivas, embevecida a olhar para o seu recente marido e a minha avó materna, pequenina e fofa, já de cabelo branco e com o ar doce de sempre. E vem tudo isto, porque o pedaço de perna e de pantorrilha que sobra dos vestidos de ambas as minhas avós deixa à mostra a pernoca gorducha e o tornozelo grosso. A da minha mãe, igualmente gorducha e de tornozelo grosso não se vê evidentemente. Penso nesta fotografia quando me travo de razões com as pernas encorpadas e tornozelos grossos e maldigo a genética.
A segunda explicação é que de todos os pecados mortais aquele a que mais sucumbo é a gula. Não preciso de comer muito, às vezes como, é verdade, mas sabem os deuses e Baco também, como gosto de uma refeição opípara, preparada com carinho e partilhada com a generosidade de dividir amores e deixar misturar-se no ar o aroma volúvel da amizade. Se estiver sozinha, como algo rápido e frugal, passam-se anos sem que coma um bolo de pastelaria, prescindo de cremes, natas e bolos superlativos de cores e decorações, torço o nariz aos fritos que me olham de soslaio, miseráveis na sua existência entre vitrinas, se não comer pão não morro e batatas fritas e massas, como legumes, como fruta, como iogurtes magros, bebo muita água, mas não resisto a uma boa mesa entre amigos, um jantar de sexta-feira caprichado e um almoço de Domingo retemperador e prenhe de sabores novos e velhos na calmaria de nada fazer.
A terceira explicação é que gosto de cozinhar. Gosto de experimentar coisas novas, acrescentar ao que já sei fazer, modificar o faço, modifico muito e raramente sigo uma receita à risca e gosto das cores, das fragrâncias, da expectativa, de cozinhar para os outros.  E gosto de bebericar um copo de vinho enquanto cozinho, ou enquanto espero ou com a refeição, e de comer uns amendoins salgados e picantes ou depenicar qualquer outra coisa que me corte o adocicado do Moscatel ou do vinho do Porto ou do Port Tonic que, como se prevê, também gosto.
E serve isto para dizer que com esta genética e estes prazeres, só me restam dois trilhos: ou me conformo com as formas rotundas, cada vez mais rotundas, ou me abalanço na dieta. Optei pela última, mas como as dietas são como as leis, existem para ser quebradas, hoje fiz um clafoutis de morangos para rematar o almoço de Domingo. Apetecia-me tanto mas tanto algo doce. Pareceu-me pouco calórico e primaveril para comemorar a estação. Uma fatia não faz mal, ou fará?

Clafoutis de morango

Ingredientes
500 g de morangos
150 g de açúcar
120 g de farinha
4 ovos
200 ml de leite
200 ml de natas light.(usei marca branca Pingo Doce)

Preparação
Pré-aquecer o forno a 180º. Barrar uma forma refratária com margarina. Lavar os morangos. Cortá-los em quartos longitudinais e deixá-los escorrer. Bater os ovos com o açúcar até que fique um creme fofo e esbranquiçado. Juntar a farinha e continuar a bater. Por fim adicionar o leite e as natas. Espalhar os morangos uniformemente pela forma. Deitar o creme por cima e levar ao forno durante cerca de quarenta minutos.  Deixar arrefecer.



Fiquei fã deste doce indefinido sem ser tarte ou bolo ou pudim de textura húmida, aveludada e macia. Ideal para rematar um almoço mais pesado ou para quem gosta de sobremesas leves com fruta.